No último post do blog, o propósito era demonstrar uma perspectiva sobre a torcida do Fluminense, partindo de um humorista assumidamente rubro-negro, que marcou sua carreira pela firme posição política ligada aos valores socialistas, e pelo permanente patrulhamento contra o regime golpista que havia freado o processo de democratização do país . Em suas tiras sobre futebol para o Jornal dos Sports, o Fluminense se transformou no pretexto para cutucar (com arame farpado) a parcela civil elitista, cujo apoio foi fundamental para que se formasse a conspiração militar contra o governo de jango. Vale lembrar que o humor trabalha com ideias caricaturais e generalizantes. Se o Fluminense representava a aristocracia, estava ali, ao lado do botafoguense, o alvo a se almejar.
Mas no mesmo jornal em que Henfil tinha seu espaço para lembrar o torcedor que ele vivia numa ditadura , um certo Nelson Rodrigues poderia transformar o embate cultural entre cronista e cartunista, um duelo de Titãs, digno dos melhores Fla-Flus de todos os tempos. Basta lembrar que estamos tratando de dois nomes que marcaram cada um a seu modo, transformações profundas na cultura brasileira. E apesar de terem frequentado juntos a redação do JS num período de cerca de meia década, optei por selecionar aqui uma crônica de Nelson bem anterior ao período de Henfil, porque ela traz uma ideia diametralmente oposta a do cartunista, em seu melhor estilo, comparando as emoções do futebol a movimentos revolucionários históricos. Nelson carregava o texto com esplêndidas metáforas caricaturais que acentuavam expressivamente o caráter emocional do velho esporte bretão. Reparem na crônica de 13 de dezembro de 1959:
"Amigos reparem: _ Há algo de patético na torcida do Fluminense. Nós, com a nossa crassa e ignara simplicidade, temos a mania de falar em "aristocrático clube das Laranjeiras". E eu vos digo: "aristocrático" em termos. Será aristocrático porque, no seu quadro social, falta tudo menos grã-finos. Mas há algo mais no Fluminense (...) do que a aristocracia que lhe atribuem. Mais exato seria dizer que ele é o clube de todas as classes."
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" Costumamos desprezar o cartola. mas vamos e venhamos: _ com o seu charuto afrontoso e ultrajante, a conspurcar de cinza os tapetes, ele tem seu charme. Sim, no Fluminense, há cartolas em penca. Vocês querem o príncipe? É o que não falta no Fluminense. Esse grã-finismo autêntico é gostoso de se ver. Há também a família de classe média, a mocinha linda, o pai, a mãe, com os seus escrúpulos severos.
Nada, porém, é tão impressionante como o pé-rapado do Tricolor. Amigos, o Fluminense, com toda a sua aristocracia, tem, na sua torcida, uma plebe que eu chamaria de épica. É uma multidão que o acompanha, com ululante felicidade. Jogue o Fluminense com o escrete húngaro ou com o Casca-Grossa F. C. e lá estarão esses heróis de pé descalço."
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" Com a nossa bandeira erguida aos ventos da vitória, lá se vão os pés descalços atrás do time. Eu acredito que esses mesmos homens , em encarnações passadas fizeram a Revolução Francesa e derrubaram bastilhas. Amigos, eis a verdade: _os campeonatos e as revoluções vivem de paixão. Sem sentimento, não se derruba uma bastilha, nem se levanta um campeonato. "
Montagem sobre foto
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" Eu nunca me esqueço de um episódio a que assisti, há muito tempo. O Fluminense acabava de apanhar um banho não sei de quem. Fora uma derrota ignominiosa, que nenhum torcedor esquece. Na saída do campo, em meio a pesado silêncio tricolor, rompeu um berro solitário e altivo: "Fluminense!" Não podia haver nada de mais inesperado do que um grito trinufal no momento da tristeza e da humilhação. Foi bonito, foi sublime! O autor dessa manifestação isolada era um pobre diabo."
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"Um campeonato constitui uma soma de fatores. Um deles, e dos mais importantes, é a torcida. Um time precisa sentir, atrás de si, o berro da torcida. A ausência dessa torcida representa a solidão. nada mais triste do que um time sem ninguém. (...) Mas eu vos digo:_tem razão o Benício Ferreira Filho: _a grande torcida é a do Fluminense. Nada se compara a sua flama e à sua fidelidade. Outras podem ser mais numerosas. Uma torcida, porém, não se vale a pena pela sua expressão numérica. Ela vive e influi no destino das batalhas pela força do sentimento. E a torcida tricolor leva um imperecível estandarte de paixão. "
Nelson Rodrigues, trechos retirados da crônica "A incomparável torcida tricolor" publicada no JS, dia 03 de dezembro de 1959. (in: Nelson Rodrigues, Filho (org.) O profeta tricolor: Cem anos de Fluminense: crônicas. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
A faixa "Lutem até o fim" se tornou emblemática na mesma época em que a apaixonada torcida tricolor eternizou o "time de Guerreiros", que lhe atendeu o pedido.
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Como a gente pode ver, a crônica de Nelson parece tão imperecível quanto a paixão tricolor. Ela pode ser comprovada por episódios lapidares em que a nossa torcida tricolor mostrou a sua força. Um dos mais recentes é justamente o período em que estávamos à beira do caos, com os matemáticos estimando em 97, 98, 99,9 % as possibilidades que o tricolor tinha de cair novamente ao calvário da segundona. Pois enquanto as probabilidades de queda não chegassem a 100, essa nossa torcida encheu o Maracanã verdes de esperança, com o sangue vermelho fervendo, numa clara harmonia, branca como a luz do refletor em torno daquele time, exalando a confiança necessária para o time operar o milagre que operou. Aqueles mesmos - por que não? - que Nelson Rodrigues acreditava terem em outras vidas empenhado tochas e invadido o Palácio de Versailles no 14 Juillet de 1789. Esses mesmos, sim senhor, ousaram desafiar a lógica da estatística e os "idiotas da objetividade" sucumbiram em sua matemática, numa bestificação irrevogável diante do milagre inexplicável.
E se não bastasse a ferrenha batalha hercúlea dos guerreiros na manutenção do time, após viradas mirabolantes, como nos 3x2 contra o Cruzeiro, após terminar o primeiro tempo perdendo por 2x0, o time ainda ousa ser campeão brasileiro no ano seguinte.
Um detalhe curioso... terminado o campeonato, o Jardel Sebba, velho amigo rubro-negro, de ter sofrido ao meu lado em muitos Fla-Flus no Maracanã (quando me viu sofrer em apenas um), amigo e colega dos tempos de Santo Inácio e hoje grande jornalista da revista Playboy, me passou por e-mail o deboche do rival por termos comemorado um "não rebaixamento": "Se tivessem mais algumas 38 rodadas, quem sabe o Fluminense não seria campeão?" Respondi qualquer coisa simples, na tradicional humildade franciscana, dando-lhe os parabéns pelo título. Pois bem... 38 rodadas depois, invertem-se os papéis. O Fluminense, de fato, conquistava o mais emocionante campeonato brasileiro da era de pontos corridos e o Flamengo escapava do rebaixamento. A diferença é que a nossa escapada se tornou uma luta contra as estatísticas, contra todas as forças. Era preciso o milagre e o milagre veio com muito mais força do que imaginávamos. De um ano ao outro, escapamos do rebaixamento e levantamos um titulo depois de um incômodo intervalo, e depois de muitos "quases".
Mandei um e-mail ao meu velho amigo, parabenizando-o por seu poder profético.
Mandei um e-mail ao meu velho amigo, parabenizando-o por seu poder profético.
Muito devemos ao time, como devemos ao Cuca, técnico do time na arrancada de 2009, mas devemos também muito à nossa torcida, que com o clássico "Guerreiros, guerreiros, time de guerreiros" mostrou que acreditava naquele time, quando todos acreditavam na sua queda, embalou nossas vitórias e contagiou o país com sua paixão incondicional!
FLUMINENSEEEEEEEEEEEEEEEEE!
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