Figura 1 – Nas charges de Molas, as referências
geográficas do Rio de Janeiro são as mais características. Molas não delimita
os diferentes espaços da cidade, de acordo com as classes sociais. Todos os
mascotes costumam frequentar os mesmos ambientes. Aqui, um vestígio de uma
época em que, como veremos, Copacabana vivia seu apogeu, enquanto espaço
privilegiado da cidade. JS, 01 de abril
de 1945.
Figura 2 - Os espaços urbanos da cidade são
delimitados de forma caricatural na perspectiva de Henfil, em que duas grandes
regiões mantém-se em constante conflito. A Zona Sul, área mais nobre da cidade,
bem como o subúrbio são representados por seus elementos e símbolos mais
significativos: a praia, o Pão de Açúcar, com o Cristo Redentor situado sobre
ele, em vez de sobre o Corcovado, onde o mesmo realmente está. JS, 24 de janeiro de 1970.
Este post não trata apenas de questões exclusivas ao nosso querido Fluzão. Aqui reproduzo, tentando amenizar a linguagem acadêmica, parte de um capítulo de minha dissertação sobre as célebres charges de Molas e Henfil, principais criadores das mascotes dos times cariocas, hoje conhecidas por muitos torcedores. Mas, por se tratar de assunto ligado à história do Rio e à memória afetiva do futebol, está mais que justificada sua presença no blog. Vamos ao assunto.
Duas charges, dois diferentes "Rios" de Janeiro. As duas abordam o mesmo assunto: o futebol, que nos dois momentos interessava a uma
parcela significativa da cidade, e foram publicadas no mais popular diário
esportivo do país, o Jornal dos Sports.
Uma primeira diferença surge logo na identificação de localizações
conhecidas da cidade. A primeira tem como cenário, a praia de Copacabana, no
momento em que o bairro vivia seu apogeu. Pedro Pinchas Geiger, em seu estudo
sobre a evolução urbana nas grandes capitais do país, refere-se à Copacabana como sendo uma "cidade dentro da cidade". O
bairro que se tornara o mais famoso "cartão postal do Rio de
Janeiro", era reconhecido como espaço privilegiado da capital, mais bem servido no que diz respeito ao
comércio, serviços gerais, alternativas de lazer, transporte coletivo, acesso
por grandes avenidas que reduzem drasticamente o tempo de viagem, além do clima
mais ameno da orla oceânica. Além disso, a preferência dada pelos turistas
estrangeiros conferia uma "atmosfera mais cosmopolita" ao bairro.Parte deste glamour acabaria se perdendo na medida em que o famoso
bairro começava a experimentar uma crescente e gradativa popularização, nas
décadas de 1950 e 60, período de intervalo entre os recortes históricos
discutidos nesta pesquisa. Com o advento do concreto armado e a exploração
imobiliária, foram erguidos novos edifícios residenciais com mais apartamentos,
porém mais estreitos, atraindo famílias de classes sociais mais humildes, que
preferiam conviver com menos espaço, em prol da boa localização, e afastando as
classes mais abastadas para os bairros próximos de Ipanema e Leblon.
A charge seguinte estabelece uma
fronteira imaginária entre os afastados bairros de Ramos e Ipanema, em uma
brincadeira que faz parte do jogo de polarizações articulado por Henfil, ao
acentuar os contrastes sociais no Rio de Janeiro. Nas suas charges, Henfil
divide o Rio de Janeiro em duas frentes: a República
Popular de Ramos e a República de
Ipanema Beach. Acentua as diferenças entre as camadas sociais na cidade, dividindo-a em dois
ambientes totalmente distintos. De um lado, a elite, representada pelo bairro
nobre de Ipanema. Do outro, as camadas populares, mais identificadas com
bairros suburbanos, como Ramos. Ainda que se deva levar em conta a acentuação
dos contrastes articulada pelo cartunista, notamos que a referência geográfica
é acrescida em sua charge de uma conotação social com maior relevância do que
na obra de seu antecessor.
A referência à
Copacabana é completamente dispensável nesta charge de Molas, uma vez que não
altera em nada o sentido da piada. Na de Henfil, o oposto. A referência
geográfica é parte da crítica implícita ao conjunto da obra. A delimitação
desta fronteira fictícia parece querer esboçar uma caricatura do abismo social
existente entre as classes sociais mais abastadas e as mais modestas da cidade.
Eles não estão impedidos de ultrapassar a fronteira. Têm liberdade para invadir
o espaço um do outro, mas não sem causar incômodos, constrangimentos ou
conflitos, verbais ou físicos.
Para se compreender um pouco melhor o contexto da charge da praia, é preciso voltar um pouco no tempo. Havia chegado a hora de começar a aquecer os ânimos para a principal disputa da época: o campeonato carioca de futebol. Molas, que já havia repetido a fórmula com as outras competições, começaria a preparar o terreno para apresentar a mais desejada de todas as misses. A pioneira e mais importante Miss Campeonato era uma espécie de "figura alegórica" que representava o aclamado campeonato carioca de futebol, que reunia os principais times do Rio de Janeiro e durava cerca de seis meses. Assim que os mascotes ficaram sabendo da chegada de uma nova filha da sogra, que anuncia seu retorno de um internato de freiras, passaram a se mobilizar para, a todo custo, conhecer os atributos físicos da moça. Em suma, queriam saber se valeria a pena, o esforço da disputa. Na charge de Molas
(figura 1), destacada no alto deste post, encontramos todos os mascotes na praia de Copacabana, tão
espantados quanto decepcionados com os trajes de banho da nova filha da sogra, recém-chegada
de um internato de freiras. Popeye caía duro pra trás e o Almirante comentava
que sua mãe usava um maiô assim. Ao centro da cena, trajando um modelo de maiô
bastante ultrapassado, que lhe cobria o corpo do pescoço aos pés, a futura Miss
45 carregava uma sombrinha, com um ridículo chapéu enfiado na cabeça, e óculos
de aros enormes. Aparentando natural constrangimento, ao perceber-se no centro
das atenções, se pergunta se não estaria muito escandalosa. Seu visual
contrastava com o traje de banho da época de todos os personagens da cena,
incluindo o das duas moças que passavam, sem resistir a comentários maliciosos:
- De que museu saiu aquela mulher?
- É a Miss campeonato 45?
Na charge de Henfil (figura 2), as notícias de um rádio de pilha vêm atrapalhar a tranquilidade do
Cri-cri, torcedor do Botafogo, que curtia sua praia, em Ipanema, refestelado à
sombra de um guarda-sol. “Terminada a partida. Spartak 5x1 Botafogo”. A sonora
goleada deixava extramente preocupado o assustado Cricri, que passa a temer uma
possível e iminente invasão dos adversários, membros da República Popular de
Ramos, à Ipanema. Ao subir em um poste, de posse de uma luneta, visualiza o
Urubu e o Bacalhau correndo em direção à área nobre da cidade. “Putzgrila!” –
exclama. “Já cruzaram a faixa desmilitarizada da Cinelândia e rumam firme para
Ipanema. A partir daí, Henfil procura transmitir a angústia do alvinegro,
mostrando, nos quadrinhos seguintes, a perspectiva de quem olha por uma luneta.
Veem-se apenas os representantes das massas aproximando-se, na medida em que
vão sendo vistos em tamanhos cada vez maiores, até que chegam a extrapolar os
limites do círculo que os envolve e que representa a vista através da luneta.
Chegando à Zona Sul, ansiosos, põem-se a procurar pelo Cri-cri. Suas expressões
sugerem excitação e sadismo. Ao final, o Cricri, que estava escondido em uma
lata de lixo, é descoberto pela dupla ao ser lançado para o alto feito um
foguete e expelir um enorme ovo, que seria levado com entusiasmo pelos rivais,
em júbilo.
Figura 2.3 – Os
espaços da cidade no humor de Henfil são representados de forma a acentuar os
contrastes sociais do Rio de Janeiro. A caracterização desses contrastes são
reforçados aqui como denúncia da diferença de atenção do Estado, se compararmos
as áreas de moradias mais nobres e mais humildes. Contrasta-se, por exemplo, um
cacto na área da República de Ramos, com flores em Ipanema Beach. Nota-se
também a diferença entre o desenho das placas de identificação das duas
regiões. JS, 14 de janeiro de 1970.
Esta outra charge de
Henfil (figura 3) traz apenas o torcedor
alvinegro na sua euforia solitária. Seu traço gestual somente se presta, à minúcia de detalhes, se servir a uma
dose a mais de escárnio. Quando precisa delimitar, por exemplo, a fronteira
fictícia entre a República de Ramos e
de Ipanema Beach, faz questão de
diferenciar as placas. A da elite, fincada sobre um jardim florido, mais
estreita, sutil e bem decorada, apresenta adornos nas extremidades, enquanto a
do povo é maior, mais rude e sem maiores “delicadezas”. No espaço reservado a
Ramos, percebe-se a insólita presença de um cacto. Além da referência sutil ao
tratamento diferenciado dado pelos governantes às áreas mais nobres da cidade,
o cacto pode, talvez, sugerir a ideia de um clima “árido” nessas regiões, ou
uma associação entre todas as áreas carentes do país, como a Caatinga,
representada por Henfil, nas tiras da Graúna e Zeferino.
A decepção do alvinegro
é salientada pelo vazio cenográfico dos quadros. É possível que este vazio não
estivesse assim tão longe da realidade das ruas, uma vez que o momento era de
Copa do Mundo. Mais precisamente, a do México, em 1970, que consagraria a
seleção brasileira como potência mundial no futebol, e o Brasil levaria
definitivamente a taça Jules Rimet, ao conquistar o tricampeonato na primeira
edição do torneio mundial transmitido ao vivo pela televisão. O motivo da
alegria do Cri-cri era pela participação dos jogadores alvinegros, na vitória
da seleção em uma partida amistosa. Para além do deboche direcionado à patética
euforia diante de motivo tão banal para celebração, ou direcionado a uma
desmoralização ainda maior, as charges de Henfil destacadas ainda denunciam, de
modo geral, uma ampliação desordenada da malha urbana, onde espaços mais nobres
mantêm-se sob domínio de uma casta privilegiada, enquanto as carentes e
longínquas regiões periféricas testemunham prolongados períodos de expansão
demográfica.
Procuramos observar
aqui, através do contexto do desenvolvimento urbano da cidade, que aspectos
foram capazes de influir no trabalho de Molas e Henfil. Os cartunistas
vivenciaram grandes transformações na cidade em seus períodos, no que diz
respeito à política, à sociedade, à urbanização, a valores morais e culturais.
O Rio de Janeiro expandia-se e industrializava-se em ritmo acelerado. Entre um
momento e outro, perderia a condição de Distrito Federal. Três anos após a
transferência da capital para Brasília, Geiger enumera uma série de fatores que
dimensionam a importância para o desenvolvimento da cidade, de ter usufruído ou
mantido algumas das benesses adquiridas com a posição de Capital da República.
Entre diversos dados apontados, destaca-se a renda do setor terciário
correspondente à manutenção do governo federal, o número de servidores públicos (mais de 200 mil, segundo o autor) e
boa parte dos organismos econômicos oficiais mantiveram sua sede na cidade. Mesmo com a perda da
condição de capital federal, a população do município do Rio de Janeiro
passaria de 1.759.277 habitantes em 1940, para 3.330.431 em 1960. Este crescimento populacional evidentemente não ocorreu de maneira bem
distribuída, mas sempre com maior intensidade ou mais irregularmente nas zonas
suburbanas do que na área nobre da cidade. Sobre a população concentrada nas
áreas tidas como menos favorecidas da cidade, basta verificar que o aumento
populacional apurado representa um percentual que sobe de 48% da população da
cidade em 1940, para 55% em 1960.
É válido ressaltar
ainda que o espaço fictício das tiras de Henfil ignora diferentes gamas entre as classes sociais contrastantes, seja pelo lado da elite, seja entre as regiões mais
periféricas da cidade. Uma vez que as diferentes localidades da cidade indicam
diferentes condições socais, essa caricatura que Henfil elabora dos espaços
sociais do Rio de Janeiro ganham maior relevância na sua obra do que a
caricatura que Molas faz da cidade. Se a população da Zona Sul envolve famílias
de diferentes níveis sociais, podemos verificar, segundo Geiger, nuances
bastantes distintas nos bairros e regiões do subúrbio carioca, onde Bangu se
notabilizaria pela forte presença de sua indústria têxtil, Madureira por
importantes centros comerciais e Marechal Hermes por servir de área residencial
de militares. É todo este universo,
somado ao das favelas cariocas espalhadas pela cidade, que está representado na
República Popular de Ramos. A caricatura aqui assume seu papel de acentuar os
traços mais característicos, ao desprezar diferenças de nível social radicais, seja entre os grupos formados
pelas classes mais favorecidas, seja entre as camadas mais populares. Ao
esboçar a caricatura da sociedade carioca, Henfil procura enfatizar o já forte
contraste social do Rio de Janeiro. Através da ampliação do fenômeno, confronta
realidades sociais mais privilegiadas com as mais modestas da população.
A charge de Molas não associa Copacabana a um ícone elitista, mas podemos imaginar a intenção de identificar uma localidade conhecida e afetiva à população (provavelmente também para o próprio cartunista, morador do bairro) e que, pelas afirmações de Geiger e Abreu, vivia seu apogeu. Se a praia, a princípio, é reconhecida enquanto espaço público e de livre acesso à população, independente de sua classe social, não se estranha a presença dos cinco personagens mais associados aos times tidos como “pequenos” no cenário da praia. No entanto, podemos observar os trajes inapropriados ao banho de alguns dos personagens “suburbanos”. Enquanto os que representam os times “grandes” estão todos em trajes de banho, podemos observar o malandro, do Madureira, com seu terno de sempre; o operário do Bangu, com seu uniforme, e o seu Leopoldino, do Bonsucesso, com os seus inseparáveis paletó e guarda-chuva. Molas parece querer evidenciar os limites sociais no uso não democrático deste espaço público, ao frisar que apenas os representantes da “elite” do futebol têm acesso aos lazeres.
A charge de Molas não
associa Copacabana a um ícone elitista, mas podemos imaginar a intenção de
identificar uma localidade conhecida e afetiva à população (provavelmente
também para o próprio cartunista, morador do bairro) e que,
pelas afirmações de Geiger e Abreu, vivia seu apogeu. A irrelevância desta
identificação para a compreensão da charge, a meu ver, só alimenta a hipótese
de que a intenção do cartunista seria apenas situar a cena em uma praia bem
movimentada, a mais famosa da época, onde a população carioca se encontrava nos
domingos de sol. Se a praia, a princípio, é reconhecida enquanto espaço público
e de livre acesso à população, independente de sua classe social, não causa
espécie a presença dos cinco personagens mais associados aos times tidos como
“pequenos” no cenário da praia. No entanto, podemos observar os trajes
inapropriados ao banho de alguns dos personagens “suburbanos”. Enquanto os que
representam os times “grandes” estão todos em trajes de banho, podemos observar
o malandro, do Madureira, com seu terno de sempre; o operário do Bangu, com seu
uniforme, e o seu Leopoldino, do Bonsucesso, com os seus inseparáveis paletó e
guarda-chuva. Molas parece querer evidenciar os limites sociais no uso não
democrático deste espaço público, ao frisar que apenas os representantes da
“elite” do futebol têm acesso aos lazeres.
O momento registrado
por Molas remete a um processo de popularização de Copacabana que se
intensificaria a tal ponto que, no período descrito por Henfil, o bairro já não
convence mais como representativo desta elite. Após a abertura do Túnel Velho,
ligando Botafogo a Copacabana, na última década do século XIX, esta região da
cidade passaria a crescer em ritmo cada vez maior, com a incorporação à urbanização de Copacabana, Ipanema e Leblon,
transformando-se, no decorrer do século XX, no espaço privilegiado do Rio de
Janeiro, onde se concentraram as camadas mais abastadas da cidade. Com o barateamento dos custos das obras e os investimentos públicos estimulando
a construção civil, o processo de verticalização foi se intensificando em
Copacabana desde fins da década de 1930.Parte da classe média começava a poder realizar o sonho de morar na Zona Sul, e
essa expansão foi nitidamente maior em Copacabana, onde a oferta de comércio e
serviços só fazia crescer.
“(...)
graças ao seu conteúdo social e ao dos bairros vizinhos, de constituir uma
clientela exigente, numerosa e concentrada, [o bairro se] distingue do restante
da zona residencial. Por tudo isso, Copacabana é uma cidade dentro da cidade”. Pedro Pinchas Geiger.
Praia e bares: a sensação do lazer carioca no auge de Copacabana.
Av. Nossa Senhora de Copacabana e a verticalização do bairro, nos anos 1940-50.
Assiste-se a partir dos anos 1940 a um enorme boom imobiliário em Copacabana, e o crescimento de edificações mais modernas, de vários pavimentos”. Copacabana, entre 1940 e 1960, viu
sua população triplicar, pulando de 74.133 para 240.347 habitantes. A explosão demográfica
em Copacabana, que atraía principalmente as famílias de renda mais modesta, foi
afastando os mais abastados em direção ao Leblon, passando evidentemente por Ipanema, que passaria a se tornar um bairro símbolo
da elite carioca, como sublinha Henfil. Ainda que a República de Ipanema Beach, imaginada por Henfil, compreendesse
toda a Zona Sul, Copacabana talvez já não fosse mais o bairro adequado a
representar a elite.
Av. Vieira Souto, Ipanema, anos 1970. Curioso predomínio de fuscas.
Acaso da foto ou exagero de Henfil? A paisagem, no entanto, é nobre como em sua Ipanema Beach.
Capa do disco Garota de Ipanema. A Bossa Nova teria ajudado a levar parte do glamour (e do processo de popularização) de Copacabana para Ipanema?
Referências
GEIGER, Pedro Pinchas. Evolução da Rede
Urbana Brasileira. Rio de Janeiro, Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais
(MEC), 1963, p.174-75.